Carta de Campinas norteia atuação de Estado e sociedade civil no combate à exploração de crianças e adolescentes no esporte

Documento é fruto de dois dias de discussões empreendidas num seminário em Campinas que reuniu as maiores autoridades do direito e da formação desportiva

 Editado em 03/12/2014

Campinas - O encerramento do seminário “Juntos pelos direitos de quem sonha ser atleta” se deu nesta terça-feira (2) por meio da leitura da “Carta de Campinas” pelo coordenador nacional da Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes), Rafael Dias Marques. Trata-se de um documento contendo 15 itens que deverão nortear a atuação de representantes do Estado e sociedade civil na busca pela garantia dos direitos sociais e trabalhistas de jovens que têm o sonho de se profissionalizar no esporte.

Entre as medidas mais importantes estão o estabelecimento da formação profissional como uma modalidade de trabalho que, portanto, deve respeitar as normas nacionais e internacionais sobre o tema, o reconhecimento do Estado e da sociedade brasileira de que há um cenário de exploração de adolescentes no futebol (inclusive em casos de tráfico de pessoas), as responsabilidades das Federações e Confederações na mudança da realidade atual e a declaração de urgência na apresentação de uma legislação específica que proteja os jovens de tal exploração.

Outras cláusulas discorrem sobre a importância de compatibilizar o calendário esportivo com o calendário de férias escolares, proporcionando o exercício do direito à educação, a necessidade do trabalho intersetorial e de espaços de diálogo e, principalmente, o respeito às limitações impostas pela Lei Pelé na formação de jovens menores de 14 anos, dentre outros itens.

Segue abaixo, na íntegra, a Carta de Campinas:

 

 

CARTA DE CAMPINAS

PELA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM FORMAÇÃO PROFISSIONAL DESPORTIVA

A. PREÂMBULO

I CONSIDERANDO que o Brasil é signatário da Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959, a qual, em seu preâmbulo, reconhece que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio de sua família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão.

II - CONSIDERANDO que o artigo 3º dispõe que "Os Estados Partes se certificarão de que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da proteção das crianças cumpram com os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, especialmente no que diz respeito à segurança e à saúde das crianças, ao número e à competência de seu pessoal e à existência de supervisão adequada".

III – CONSIDERANDO que a Convenção Sobre os Direitos da Criança reconhece o direito da criança de estar protegida contra a exploração econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja nocivo para sua saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social (art. 32); e também impõe que os Estados partes tomem medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais para assegurar a aplicação desse artigo.

IV – CONSIDERANDO que a Convenção nº 182 da  Organização Internacional do Trabalho, (ratificada pelo Brasil, por meio do Decreto 3597 de 12/9/2000), considera o tráfico de crianças ou outras práticas análogas a escravidão como uma das piores formas de trabalho infantil (art. 3º).

V - CONSIDERANDO que o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Relativo ao Tráfico de Pessoas, conhecido como Protocolo de Palermo (Decreto 5017, de 12/03/2004), define a expressão "tráfico de pessoas" como  recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração" (art. 3º, "a").

VI - CONSIDERANDO que, para as Convenções Internacionais, o termo "criança" significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.

VII – CONSIDERANDO que a Constituição Brasileira (art. 227), albergando o princípio da proteção integral e prioridade absoluta, assegura ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”;

VIII - CONSIDERANDO que a Constituição Brasileira (art. 7º,  XXXIII) estabelece a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

IX - CONSIDERANDO que a CLT define o contrato de aprendizagem como o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência, as tarefas necessárias a essa formação.

X – CONSIDERANDO que o art. 232 do ECA atribui responsabilidade criminal pela conduta de submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância, a vexame ou a constrangimento.

B. DECLARAÇÃO

Nós, participantes do Seminário “O Legado dos Megaeventos e os Direitos Fundamentais: A Proteção de Crianças e Adolescentes em Formação Profissional Desportiva", realizado em Campinas, nos dias 1 e 2 de dezembro de 2014, juntamente com representantes de entidades estatais e não estatais interessadas na temática (Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho, UNICEF, Ministério do Trabalho, Justiça do Trabalho, Ministério Público,  Justiça Estadual, Conselho Nacional de Imigração, Conselhos Tutelares, etc).

DECLARAMOS QUE:

1.A formação profissional desportiva é uma modalidade de relação de trabalho e, como tal, deve obedecer aos ditames das normas nacionais e internacionais sobre o tema.

2. A Lei Pelé deve ser interpretada em consonância com as normas que formam o sistema de proteção da infância e adolescência (Estatuto da Criança e Adolescente e legislação complementar), e, especialmente, com as previsões constitucionais de erradicação do trabalho infantil e proteção do trabalho adolescente a partir dos 16 anos.

3. As entidades formadoras, que desenvolvem desporto na modalidade de esporte de rendimento, não devem manter, com objetivo de formação profissional, atletas com idade inferior a 14 (quatorze) anos, com vistas a evitar a profissionalização precoce, tão nefasta ao desenvolvimento biopsicossocial de crianças e adolescentes.

4. O desporto de educação ou participação, nas escolas regulares ou de esportes, devem ser incentivados desde a mesma tenra idade, como instrumento de desenvolvimento biopsicossocial de crianças e adolescentes.

5. Os adolescentes maiores de 14 (quatorze) anos poderão ser submetidos a testes ou seleções, sempre gratuitos e, uma vez aprovados, deverá haver a celebração de contrato de formação desportiva, na forma do art. 29, § 4º, da Lei Pelé  e das Resoluções n. 01 e 02 da Confederação Brasileira de Futebol, com fixação de bolsa não inferior a um salário mínimo.

6. Visando à garantia do direito fundamental à convivência familiar e comunitária, o alojamento de atletas deve ser feito de modo excepcional, apenas em casos em que não seja possível o deslocamento periódico ao centro de treinamento. Assim, as entidades esportivas, nestes casos, assumem a natureza de instituição de acolhimento, que deve ser cadastrada e fiscalizada pelos Conselhos Municipais de Direitos de Crianças e Adolescentes.

7. Em casos de alojamento de atletas, devem ser garantidos os direitos à educação, saúde, à integridade física e psicológica, à alimentação adequada, à convivência familiar e comunitária, a um ambiente seguro e protegido e ao cuidado por profissionais especializados em áreas como técnico-desportiva, médica, dentre outros cuidados.

8. O Estado e a sociedade brasileiros devem reconhecer que a exploração de adolescentes no futebol é um grave desrespeito aos direitos humanos, podendo, em alguns casos, vir a ser enquadrada como tráfico de pessoas. Como consequência, devem ser adotadas as medidas pertinentes à prevenção, tais como campanhas de esclarecimento à população, capacitação dos órgãos de atenção às vítimas e famílias e edição de lei específica.

9. O Brasil deve, com urgência, editar legislação específica sobre a formação profissional desportiva de crianças e adolescentes, cuja norma deve estar em acordo com os direitos fundamentais da infância e da adolescência, em especial educação, saúde e convivência familiar e comunitária.

10. Em ordem a garantir o direito fundamental à educação, as Confederações e Federações desportivas devem compatibilizar o calendário de suas respectivas competições ao calendário escolar, de modo a não prejudicar a formação educacional.

11. Devem ser criados e/ou fortalecidos espaços de diálogos com as entidades formadoras, confederações e federações desportivas, atletas e sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, visando à sensibilização e estabelecimentos de consensos.

12. O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, por seus múltiplos integrantes, deve atuar de modo integrado e intersetorial, de modo a se construir, juntamente com as entidades formadoras, um pacto pela proteção de crianças e adolescentes em formação profissional desportiva.

13. Família, Estado e Sociedade, nesta incluídas as entidades formadoras desportivas e empresários, são solidariamente responsáveis pela garantia da proteção integral de crianças e adolescentes nos esportes, de modo que a formação profissional desportiva não seja um instrumento de lesão a qualquer direito fundamental constante do art. 227 da CF/88.

14.  O Estado brasileiro não deve permitir o rebaixamento da idade mínima de profissionalização, a fim de que seja mantido o limite etário de 14 anos, como forma de evitar o retrocesso social  e a diminuição do parâmetro de proteção dos direitos fundamentais.

15. Devem ser aprimorados os mecanismos de fiscalização e de sanção a eventuais casos de violação de direitos, de modo que seja reforçado o papel fiscalizador das Confederações e Federações Desportivas nesse contexto.

Campinas, 2 de dezembro de 2014.

Imprimir