Acervo resgata duas décadas da história do trabalho no interior de São Paulo

Campinas - Setembro de 2018. O incêndio que atingiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro queimou mais de 200 anos de história da civilização brasileira, um desastre incontável em termos econômicos e culturais. Mas felizmente, outras iniciativas tentam manter a nossa memória viva, sendo uma delas a criação do “Acervo MPT15”, uma coleção de documentos digitalizados que preserva a história de uma das instituições públicas mais relevantes do interior de São Paulo, o Ministério Público do Trabalho na 15ª Região, e por meio dela, tenta contar um pouco da trajetória das relações de trabalho no Brasil ao longo de 20 anos.

Na última segunda-feira (24), o “Acervo MPT15” foi lançado como parte da programação do “Fórum Permanente Condições de trabalho no Brasil contemporâneo: políticas públicas e memória institucional”, no Centro de Convenções da Unicamp. O projeto é resultado de um convênio firmado entre o MPT Campinas, o Centro de Pesquisa em História Social da Cultura da Universidade Estadual de Campinas (Cecult/Unicamp) e o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/Unicamp) em 2014, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Ao todo são 24.029 documentos que registram investigações realizadas entre os anos de 1991 e 2010. O vasto material reunido não se restringe aos termos de ajuste de conduta, ações civis públicas ou sentenças proferidas pelos juízes. Inclui documentação que demonstra as relações de trabalho em empresas e administrações públicas – incluindo cartões de ponto, contratos, manuais de conduta, holerites, etc – até um pouco da história pessoal de cada trabalhador, através de depoimentos, carteiras de trabalho, exames médicos e até cartas de próprio punho. Também foram disponibilizados vídeos, fotografias, croquis de áreas investigadas e relatórios de diligências em campo, dentre outros.

“O acervo nos ajuda a entender como se dão as relações de trabalho na atualidade de uma forma privilegiada: através dos pontos de vista de seus protagonistas. Ele permite conhecer quem eram esses trabalhadores, as atividades que exerciam, até como viviam. Além de acompanhar os bastidores da atuação de um órgão público importante como o Ministério Público do Trabalho. Esses documentos tocam em temas como trabalho escravo, indígena, de pessoas menores de 18 anos, por aí vai. As possibilidades de pesquisa são inúmeras”, afirma Humberto Celeste Innarelli, diretor técnico do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), onde as reproduções digitais dos procedimentos administrativos estão depositadas.

Como ele explica, no site há apenas informações básicas sobre a documentação. É um instrumento prévio, que facilita o acesso ao acervo. A consulta aos documentos propriamente ditos só poderá ser feita presencialmente no AEL mediante preenchimento de cadastro e assinatura de termo de responsabilidade para uso da documentação. “Esses procedimentos são de atividades encerradas. Já houve a decisão final, com ou sem o termo de ajuste de conduta. Mas como contêm informações sensíveis, eles só podem ser consultados no arquivo”, atenta.

Para a procuradora-chefe do MPT Campinas, Maria Stela Guimarães De Martin, o “Acervo MPT15” tem uma importância histórica ímpar para a sociedade, uma vez que representa uma rica coleção de informações que versam sobre os mais diversos temas, tais como trabalho escravo, trabalho infantil, terceirização, salário, jornada e outros assuntos de interesse social. “Todo esse riquíssimo acervo está disponível para consulta popular, de forma que todos os cidadãos poderão ter acesso a um pouco desse recorte histórico, que se confunde com a história do nosso país”, afirma.

“Foram anos de estudos e discussões para que, finalmente, pudéssemos assinar o convênio e possibilitar a digitalização do acervo de procedimentos arquivados da Procuradoria em Campinas”, complementa Catarina von Zuben, ex-procuradora-chefe do MPT Campinas e atual coordenadora da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, responsável pela assinatura do convênio em 2014.

Trabalho escravo, um problema contemporâneo – Para a historiadora do Cecult Silvia Lara, participante do Projeto Temático “Entre a escravidão e o fardo da liberdade: os trabalhadores e as formas de exploração do trabalho em perspectiva histórica”, que deu origem ao Acervo MPT15, os documentos permitem examinar as relações entre escravidão e liberdade no mundo contemporâneo: como essas formas de exploração do trabalho estão sendo pensadas, se distinguem e até se confundem nos dias de hoje.

Um balanço preliminar do material revela que houve um aumento dos casos de redução à condição análoga à de escravo nos últimos anos. Dos 170 casos diretamente relacionados a “trabalho escravo” ou “escravidão” presentes no acervo, 81 deles aconteceram entre 2006 e 2010. Uma das razões para maior incidência de casos no período pode ser o aumento de uma sensibilidade social em relação ao tema. Mas o estudo mostra que a própria definição de trabalho escravo ainda é um assunto nebuloso para muitos dos agentes públicos que estão envolvidos no combate a essas práticas.

“A mudança dos termos do artigo 149 do Código Penal realizada em 2003 é um marco importante, pois tornou mais fácil identificar o trabalho escravo, definindo-o de modo mais claro. Mas o que podemos observar – mesmo numa análise preliminar – é que o tema é controverso. Nem sempre as denúncias chegam ao final constatando essas práticas e vice-versa. Ou seja: há um debate sobre o que é ou não trabalho escravo. É preciso contar com séries documentais definidas para que estudos mais profundos sobre essa triste realidade das relações trabalhistas no Brasil possam ser feitos. Para além da produção de conhecimento, isso é importante para a elaboração de políticas públicas de combate a essa prática”, aponta a pesquisadora.

Salvo da destruição –Apesar da importância, todo o material que compõe o “Acervo MPT15” correu o risco de desaparecer. Não por negligência ou tragédia, como foi o caso do incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, mas com o consentimento da própria legislação. A lei 7.627, de 10 de novembro de 1987, autoriza as instituições trabalhistas a eliminar “por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, de autos findos há mais de cinco anos, contado o prazo da data do arquivamento do processo”. Seguindo a mesma diretriz, a legislação brasileira sobre arquivos também permite a eliminação de documentos. A prática é comum e disseminada pelo país, muitas vezes sem que uma análise mais cuidadosa da eventual importância histórica seja realizada.

Esse acervo só foi preservado graças à suspensão de editais de eliminação de documentos determinado pela Chefia Regional do MPT Campinas e ao investimento acadêmico de pesquisadores da Unicamp, que conseguiram financiamento público para a digitalização e organizaram uma equipe de bolsistas para descrever essa documentação. Hoje os originais são mantidos pelo MPT e o AEL é o depositário das cópias digitais que podem ser consultadas pelos pesquisadores. Com o lançamento do site, seus organizadores esperam que outras instituições públicas também sigam o exemplo.

“A digitalização de material textual é um bom recurso auxiliar no acesso e na preservação da informação dos documentos. Não é o único nem pode substituir completamente sua preservação física, pois tem falhas e demanda atualizações e sistemas de gerenciamento que algumas vezes são caros – mais caros até do que guardar os documentos em papel. A legislação sobre arquivos no Brasil é boa, mas a política de preservação dos acervos arquivísticos é precária e sua aplicação altamente deficitária”, conclui Lara.

É possível acessar o “Acervo MPT15” através do endereço: https://www.cecult.ifch.unicamp.br/bases-dados/ampt/apresentacao.

Agradecimentos: Ascom Unicamp

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